domingo, 16 de janeiro de 2011
O lápis
A caixa já andava meio molenga, de tanto abrir e fechar. Mas seu conteúdo continuava praticamente intacto: 36 lápis coloridos que ela gostava de manter na ordem original de fábrica - dos mais escuros para os mais claros.
Apesar de tanto zelo, adorava quando a professora inventava de pedir a tarefa batizada pelos alunos de “Desenho Livre”. Seu trabalho era sempre o mesmo: três montanhas, uma casinha no fundo cercada de árvores felpudas e fumaça saindo pela chaminé, indicando que o café estava quase pronto.
Depois de desenhar, ficava minutos intermináveis escolhendo que cor colocaria nas cortinas que apareciam, embabadadas, naquela janela mínima. Gostava de usar o cor-de-rosa e o azul e fazia questão de mostrar para a aluna que se sentava ao lado que as cortinas ficavam bem se pintadas de cor-de-rosa. Na verdade, era tudo um truque. Tudo um truque para que Nádia, a menina da carteira vizinha, nao pedisse emprestado seu lápis de cor preferido: o verde-água.
Heloisa não era uma menina egoísta. Dividia o lanche e o pacote de drops “Paquera”, que comprava na cantina, depois de quinze minutos de espera para tantar se fazer vista (era a mais baixinha da turma da segunda série) por Dona Tereza, que comandava a caixa registradora. Mas o lápis de cor verde-água ela não gostava de emprestar. Não era por mal. Ficava um pouco constrangida por ser acomedida por tamanho sentimento de posse. Era só um lápis. Mas era o verde-água.
Usava seu tesouro para colorir os detalhes que acreditava serem os mais importantes do desenho: o contorno da saia da menininha e o laçarote dos cabelos. E quando decidia fazer isso, espiava pelos cantos dos olhos para ver se ninguém estava prestando atenção. Depois se debruçava na carteira e enrolava o braço esquerdo em volta do caderno para esconder o lápis preferido das outras crianças de oito anos, aquelas enxeridas. E apertava o braço magro com tanta força que chegava a ficar com marcas do arame em espiral.
Às vezes nao tinha jeito de escapar e o lápis ficava meio à mostra.
- Me emprestra o verde-água? - era a Nádia.
Como ela tinha conseguido ver, a danada?
- Não quer esse cor-de-rosa? Acho tão bonito...
- Não. O verde-água.
- Empresto… Mas… Não acaRca. – Heloisa suplicava.
No final do ano, a caixa de lápis coloridos ficava meio capenga. A manutenção da ordem de cores permanecia, mas uns já estavam mais anões que outros, de tanto apontador e de insistentes desenhos de montanhas e casinhas. Mas o verde água reinava. Quase novo. Ela sorria.
Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, quando as preocupações iam muito além de escolher que cor pintar o babado de cortinas imaginárias, um estalo em seu coração fez com que ela se lembrasse do lápis querido. Conheceu o menino dos olhos verde-água.
Tal qual aquele lápis, o menino se destacava na “caixa” em que trabalhavam. E ela não queria emprestar o menino. Não queria dividir seu tesouro com mais ninguém, ninguém que pudesse gostar dele com a mesma intensidade que ela.
Sentia-se um pouco esquisita por não querer dividir. Logo ela que adorava reproduzir discursos de que todo-mundo-deve-ter-acesso-às-mesmas-coisas-em-prol-da-justiça-e-da-igualdade.
Mas quando pensava no seu menino de olhos verde-água, queria mandar o discurso às favas. Logo aprendeu que tudo bem. Não tinha problema em ter esse lado egoísta, não. Mas acabou tendo que emprestar. Como o fez com o lápis quando a Nádia pediu.
O importante é que para ela, ele seria sempre seu. Mesmo que no faz-de-conta.
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