quinta-feira, 14 de julho de 2011

O menino das camisetas


O crocodilo torto dança no bolso da camiseta enquanto ele estica os braços para acertar os ponteiros do relógio novo. Preocupou-se em pentear os cabelos para cima e vestir uma bermuda jeans da tal marca preferida. Na mochila, dinheiro e a documentação para o primeiro emprego.

Sentado no degrau mais alto da Ladeira da Memória, no centro de São Paulo, Daniel Alves gosta de lembrar que tem nome de jogador de futebol. Também cita a filha de oito meses, com quem ele quase não mantém contato e aponta três meninas do grupo de crianças da ladeira: “Aquelas são minhas filhas-de-rua. A Kelly, a Ingrid e a Ane”.

De sorriso fácil, alternando entre meninice e malandragem, o menino de 19 anos diz com tranquilidade que já passou pela Fundação Casa, antiga Febem, por roubo, e que mora na rua desde muito pequeno. Não se dá bem com a família: “Minha mãe também já tá velhinha, né, tia. Já tem 55”. Quem o conhece pode associá-lo a Bené, personagem de Phellipe Haagensen em “Cidade de Deus”, uma espécie de malandro-boa-gente.

Diferente das demais crianças e adolescentes da ladeira – naquele dia eram quase quinze – Daniel não cheira cola, mas fuma baseados diariamente. Para manter a aparência de quem acabou de sair do banho, Daniel abastece a coleção de roupas novas e de marca nas lojas do centro da cidade, com o dinheiro de furtos. "Eu roubo, tia. Todos os dias", sorri, num misto entre o embaraço e a resignação.

No grupo de crianças da Ladeira da Memória, Daniel exerce papel de liderança. Protege as filhas-de-rua e respeita as outras meninas. Sabe ler e escrever e conta que só esse ano já leu mais de 400 livros, sem medo de parecer algo improvável. Enquanto conversa, espia a marmita no colo do amigo Ivan Igor, que também está de roupa nova. Ivan dá uma garfada e depois lasca um beijo na namorada, Ana Paula, de 23 anos. “Foi amor a primeira vista”, gaba-se.

Embora seja maior de idade e tenha sofrido inúmeras revistas da Polícia Militar, Daniel parece despreocupado. Espera conseguir uma vaga de entregador do McDonald's - mas isso só se arranjar uma moto – e busca emprego pedalando a mountain bike prateada, que divide com Eduardo, o amigo do aparelho fixo nos dentes.

A atenção de Daniel muda de foco quando um grupo evangélico, vestido de palhaços, chega animado pra brincar com as crianças. Em meio a um “Corre-Cotia” pontuado por baforadas nos saquinhos de cola amarela, as crianças gritam e se divertem. Mas Daniel já não está entre elas. Montado na bicicleta, sai atrás de mais camisetas com o bordado de crocodilo.

sábado, 9 de julho de 2011

Quanto dura?


- Tia, quanto duram os sentimentos?
- Os sentimentos? Ah, bem, depende, né...
- Hum... O amor, tia, quanto dura o amor?
- Bom, quando é de verdade, dura pra sempre.
- E o pra sempre?
- Ah, o pra sempre dura até acabar.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A mulher da prefeitura


Tomada pela ferrugem e o abandono, a gangorra amarela o encarou com frieza. Ele devolveu o olhar, mas com admiração. Há quanto tempo as crianças não brincavam por ali? E mais: haveria crianças?

O mato muito verde dançava com o vento e subia por seus calcanhares. Logo atrás do playground, restava o que um dia foi uma escola primária. Duas janelas retangulares o deixavam espiar as pequenas carteiras de madeira que ainda resistiam às goteiras da chuva e ao inverno úmido daquele ano.

Vestido até as orelhas, ele continuou a caminhada. Tchetchelnyk nada tinha a ver com o que ele idealizara. Horas antes, enfiado na primeira e única poltrona posicionada de costas para o motorista do ônibus, seu peito se enchia de ansiedade; parte pelas expectativas acumuladas depois de quase seis meses planejando tal viagem e parte por causa dos olhos analíticos dos demais passageiros do ônibus, que o fitavam como quem vê algo muito estranho pela primeira vez.

O aperto no peito veio mais forte depois que ele desembarcou naquela rodoviária mínima e quando enfim percebeu que, embora tivesse imaginado um cenário mais receptivo, na verdade sentia uma ponta de identificação por aquela paisagem solitária. Tchetchelnyk carregava uma certa tensão invisível. De certa forma, era uma tensão boa, ele pensava. E por isso, não sentia medo.

Não demorou muito para que parte dos 6 mil habitantes notasse sua presença. Mochilão e cantil não combinavam com a rotina de Tchetchelnyk. Um homem de meia-idade o apontou agressivamente, como quem pede atenção para a presença de um bicho perigoso. “Подивіться на цю людину!”.

Fingindo não ter notado, o viajante seguiu seu rumo quase incerto pela cidade silenciosa. Passou pelas ruínas de uma antiga sinagoga, atravessou uma pequena ponte coberta por eras e galhos secos, cruzou ruelas de paralelepípedos úmidos que levavam a becos ermos. Apertado debaixo do braço direito, carregava o motivo daquela viagem. Caminhava encolhido, mais para proteger seu tesouro da neblina do que para driblar o frio. Era o volume de “A paixão segundo G.H” que lhe fazia companhia.

Parou quando alcançou uma igreja avermelhada, no centro do que parecia ser a praça principal da cidade. Destoando da paisagem em ruínas, a igreja abobadada reinava intacta, como se tivesse sido restaurada no dia anterior. Do outro lado da praça, uma espécie de bar o convidava para entrar.

Passou pela porta e percorreu o local com os olhos baixos em busca de uma mesa vazia. Detrás do balcão, enquanto secava copos com um espesso guardanapo, um homem corpulento analisou cada centímetro do corpo do viajante, antes mesmo que ele se ajeitasse em uma cadeira bamba. “Ви американець?”, perguntou o homem. A resposta veio gaguejada: “I’m... I’m sorry, sir, do you speak any English?”, disse, apertando ainda mais o livro, agora entre os dedos.

Mas o homem não respondeu.

Dois policiais que bebiam e riam alto pararam de repente, atraídos pela pergunta do dono do bar, ainda de copo e guardanapo em punho. O oficial mais alto se antecipou, como quem via uma oportunidade de se dar bem: “Я поговорю з ним, Іван”. E, na tentativa de se comunicar com o viajante, arriscou um inglês atropelado pelo sotaque. “You have visa? We help you. You cannot be in Ucrain with no visa”.

“I do have a visa, sir. And I’m just visiting”, defendeu-se.

“You visit Tchetchelnyk??! Tchetchelnyk no tourism. You need to pay police or we get you to jail”.

A tensão foi dissipada pelo berro do dono do bar. Atirou o guardanapo no balcão e chamou: “Марія сюди негайно!”.

A menina apareceu devagar. Corpulenta como o pai, mas de olhos mais acolhedores, perguntou: “Need help?”.

O viajante estendeu receoso o livro à menina. “I’m here because of her”. Na contracapa, a foto de uma mulher muito séria, de cabelos cheios, lábios bem desenhados e olhos oblíquos. A menina levantou as sobrancelhas e sorriu: “That’s the city hall woman!”.

Ele franziu a testa: "No, no... She's a writer. The best I've ever read, I guess... She was born here, but was rise up in Brazil".

"She looks only the city hall woman to me!".

*** *** ***

Quase sete horas haviam se passado desde que ele chegara na rodoviária vazia. O coração apertado, as mãos frias de frio e agora de medo, o livro protegido embaixo do braço direito. Sentado no banco de pedra da delegacia, esperava exausto pela honestidade sincera do policial.

Embora este não demostrasse nenhum sinal de mudança de postura, um pequeno detalhe o fez quebrar o silêncio e parar de enrolar o bigode. "Today you have your birthday", disse segurando o passaporte estrangeiro.

"That's right, sir. Today is my birthday", consentiu.

"Ok, then. I get you to city hall".

A noite já havia engolido as esquinas de Tchetchelnyk quando o policial e o viajante alcançaram enfim a sede da prefeitura. Logo na porta principal, a foto que ilustrava o livro também se destacava em uma placa de mármore.

Os olhos do viajante pararam de piscar por alguns instantes. Extasiado, ainda sem entender se agradecia o policial ou se o almadiçoava em silêncio, encarou a foto da placa em preto e branco e com dizeres em ucraniano e português.

E com um frio na espinha, chegou a sentir que Clarice Lispector sorria de aprovação.