segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Porque não


- Põe a mão aqui! Põe a mão aqui! Corre!

A palma da mão direita se apoiou na barriga de quase oito meses da amiga. Instantes depois, aconteceu. Era como sentir um pezinho querendo se esticar e furar aquela barreira de proteção. Pela posição e intensidade dos chutes, dava quase pra imaginar o tamanho daquele ser já cheio de vontades. “Quero mais espaço, mãe!”. Os movimentos inconstantes levaram as duas às lágrimas, mas eram lágrimas sorridentes.

Quem estava ao redor da dupla parou para olhar. Duas mulheres que riam e choravam olhando para uma enorme barriga. “Sensíveis demais” - taxaram. Foi quando ela se deu conta que aquela sensação nunca poderia ser compartilhada por alguns... Simplesmente porque não.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Gavetas


Ela nunca poderia explicar as sensações que lhe invadiam o peito cada vez que escutava aquele idioma. Ainda mais porque isso sempre acontecia de forma imprevisível. Ela podia, sim, buscar ouvi-lo propositalmente. Mas gostava quando era por acaso.

E foi assim, por acaso, que se deparou com um vídeo postado na internet. Onze crianças dividindo sentimentos em catalão. Aquela língua, que um dia foi pra ela um tanto incompreensível, era agora sinônimo de nostalgia. E então caía como uma luva para ela, que se autoavaliava como alguém movida a coisas do passado, às vezes a épocas que nem conheceu.

Certa vez lhe disseram, de supetão, que viver de nostalgia era negar o presente. Embora tenha refletido muito sobre tal julgamento, ela chegou à conclusão de que não era bem assim. As lembranças faziam com que ela se transportasse para sensações confortáveis, mas não necessariamente cômodas. Abrir de tempos em tempos gavetas invisíveis na memória era como combustível para viagens de olhos fechados. O vídeo em catalão foi a gasolina daquele dia em que todos ao seu redor falavam ao mesmo tempo. Colou um sorriso automático no rosto, mas sem se atentar a conversa nenhuma.

“Blábláblábláblábláblábláimportânciabláblábláblábláblátextobláblá
blábládestaquenahomebláblábláblábláblábláblábláblábláagênciasbláblá
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bláblábláblábláblábláblábláblábláblágaleriadefotosblábláblá”.

De repente estava de avental preto cruzado nas costas, atravessando uma sala com paineis coloridos na parede e mesas numeradas de forma aleatória - só pra dificultar. A bandeja ia mal-equilibrada nas mãos e a testa se alternava entre lisa e enrugada cada vez que alguém fazia um pedido na língua desconhecida. “Em pots portar una tovallola, si us plau?” Minutos depois, a memória a levava a se enxergar descendo as Ramblas de bicicleta, o vento morno balançando o vestido. Pedalava em direção ao Port Vell, para comer um cachorro-quente com sabor de aniversário. Mais uns instantes e ela se via entre as inúmeras estações de metrô, tão confusas na primeira semana e ridiculamente simples ao final de dois anos. Depois lembrava com nitidez das caminhadas de madrugada por ruelas-labirirínticas, por onde ela gostava tanto de se perder. Ia mais longe nas lembranças e conseguia ver os sorrisos dos amigos de gosto duvidoso pra escolher o corte de cabelo, mas com quem gargalhava por horas a fio trocando e descobrindo diferenças culturais. Mais um pouquinho e recordava do sistema que tinha desenvolvido para conseguir lavar os cabelos num banho de exatos sete minutos, antes que a água esfriasse de vez. E depois era das tapas, das cervejas temperatura ambiente, dos moluscos frios nas vitrines de bares miúdos e tomados pela fumaça de uma maioria de fumantes. E do verão quente, muito quente. E também do inverno úmido que a forçava a usar meias-calças sobrepostas. E dos cafés-com-leite “cortos” com donuts, e dos mercados de pulgas com mercadorias amontoadas em grandes pilhas. E das sacadinhas mínimas e muito juntas, e que apesar da proximidade, não estreitavam a relação entre os vizinhos, mesmo cada um conhecendo a roupa íntima do outro de cor.

Naquela tarde, imersa na conversa simultânea de tanta gente, ela queria voltar. Mesmo que fosse através de seus olhos fechados.